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O Ayurveda pode auxiliar no manejo da Dengue no Brasil?

Segundo dados do Ministério da Saúde do Brasil, o país registrou, na última quinta-feira (07/03/2024), 1.318.336 de casos prováveis de dengue e 343 óbitos confirmados pela doença, apenas nos primeiros 67 dias de 2024.

A incidência mais que triplicou se comparada ao mesmo período de 2023. Associa-se a isso as chuvas intensas que possibilitaram a procriação do vetor de transmissão do vírus, o mosquito Aedes aegypti.

Por tratar-se de uma doença infecciosa viral transmitida por mosquito, que é um artrópode, a dengue é classificada como arbovirose, como também são a Zica e a Chikungunya. Dessa maneira, as recomendações para prevenção são:

1. Evitar a proliferação do Aedes aegypti é necessário

Evitar focos de água parada é a prevenção mais efetiva, mas a de mais longo prazo.

2. Evitar a picada do mosquito

Proteger-se com telas em janelas, repelentes ou roupas que cubram pernas e braços, principalmente nos horários de maior circulação dos mosquitos, que é no começo da manhã e no final da tarde, é fundamental.

3. Estar imunizado ao vírus

Vacinar-se contra os quatro sorotipos do vírus da dengue previne a doença e seus agravos ao estimular o sistema imune. Ela está sendo disponibilizada na rede privada e no sistema de saúde pública (o primeiro no mundo a ofertá-la).

E quais são os sintomas de dengue?

O primeiro sintoma costuma ser febre alta (39° a 40° C), como resposta do sistema imune para combater o vírus. Também é comum dores de cabeça, musculares, nas juntas e dor nos olhos, manchas vermelhas na pele, falta de apetite, náuseas e vômitos. 

Os sintomas variam de acordo com o paciente, e como complicador, a dengue pode evoluir para febre hemorrágica (dengue grave), onde podem ocorrer sangramentos e insuficiência circulatória com redução da pressão arterial.

Essas complicações ocorrem por diversos mecanismos, sendo o principal deles a lesão que o vírus causa nas paredes dos vasos sanguíneos, gerando neles uma resposta inflamatória. Com isso, os vasos passam a ser como tubos furados e permitem o vazamento de líquidos. 

A gravidade da dengue é proporcional ao aumento dessa permeabilidade vascular. Se for pequena, extravasa apenas soro; mas se for maior, saem também células e hemácias, o que pode causar redução do volume de sangue circulante e da pressão arterial. 

De acordo com a medicina moderna, qual o tratamento para a dengue?

Ainda que as vacinas contra a dengue alcancem muitas pessoas em 2024, levará tempo para que todos estejam protegidos. Sem vacina, o tratamento pela farmacologia moderna é direcionado a atenuar sinais e sintomas, já que não há fármaco que mate o vírus em pacientes infectados. 

Assim, a recomendação de tratamento do Ministério da Saúde, para a fase inicial da dengue, é:

  1. Hidratação;

Se há “vazamento” nos vasos sanguíneos, repor o líquido é fundamental. Orienta-se o consumo de 60 ml de água por quilograma de peso corporal todos os dias. Um indivíduo com 100 kg, por exemplo, deve beber 6 litros de água por dia.

  1. Medicamentos para os sintomas de dengue;

Se o indivíduo apresenta dores e febre, administrar fármacos para alívio destes sintomas é a opção. Lembre-se que há medicamentos contraindicados em caso de suspeita de dengue e que o tratamento deve ser acompanhado de um profissional de saúde. 

E de acordo com o Ayurveda?

Há menção, nos textos clássicos, de uma doença que aumenta a temperatura corporal e causa desconfortos. Costuma ser correlacionada com a febre, embora essa não seja a melhor tradução, se chama Jvara. No Ayurveda de acordo com os Samhitas e Nighantus, esse aumento da temperatura corporal é uma doença, e não um sintoma, e se divide em vários tipos. 

No livro Madhava Nidana (o livro verde da foto abaixo) a dengue parece estar descrita como Dandaka Jvara, cuja etiologia é a picada de um mosquito. No Charaka Samhita (o livro amarelo abaixo) ela é entendida como Agantu Jvara (causada por fatores externos). 

Se há vários tipos de Jvara, como fazer o Diagnóstico no Ayurveda

Há milhares de anos não havia análise sorológica para detectar o vírus da dengue. Então, para realizar o diagnóstico da doença (ou roga pariksha), cinco elementos são analisados (são o nidana panchaka). É através desses elementos que é feita a correlação da dengue com Dandaka Jvara ou Agantu Jvara.

Fisiopatologia da Dengue no Ayurveda

Os clássicos também explicam como a doença se desenvolve. O Charaka Samhita (Nidana Sthana 1:30) afirma que vata e pitta dominam a patogênese da Agantu Jvara, sendo ela precedida de dor. 

A fisiopatologia dessa “febre” tem, portanto, vata dosha como base. Esse dosha é capaz de se acumular na primeira fase da digestão (amashaya), que é local natural de pitta dosha, e então, se propagar através do primeiro tecido corporal (rasa dhatu) e deslocar o fogo digestivo (agni). 

Por isso há prejuízo na digestão e aumento da temperatura corporal. Se você for nerd, essa referência você encontra no Charaka Samhita, Chikitsa Sthana 3.

Então, qual seria o tratamento da Dengue no Ayurveda?

Diante da fisiopatologia, e considerando o prabhava da doença, que são sinais e sintomas que estão invariavelmente presentes (veja Caraka Samhita, Cikitsa Sthana 3:31), é possível lançar recomendações para manejo da dengue, apesar de ser idealmente necessário analisar também o paciente (rogi pariksha) para um tratamento preciso no Ayurveda.

Em vista disto, genericamente, o tratamento pode ser dividido em duas frentes:

  1. Ahara (alimentação)

Considerando uma capacidade digestiva (agni) desequilibrada, a dieta deve ser leve, evitando-se alimentos pesados e de sabor adstringente

Os sabores indicados são doce, que alivia pitta e vata dosha, como arroz e feijão moyashi; e amargo (tikta), como algumas folhas verdes escuras, por exemplo.

Caso o paciente digira bem, pode ser indicado o consumo de  tâmaras e de água e polpa de côco, que apaziguam vata e pitta, e aumentam a disposição (balya). Sendo a tâmara ainda indicada para sangramentos, e o côco para dores em geral.

Ademais, são indicadas ervas que fortaleçam a digestão (agni dipana), e ajudem a digerir alimentos mal processados (ama pachana). Elas podem ser preparadas em decocções ou adicionadas a preparações como o mingau de arroz (yavagu) ou o feijão moyashi, bastante indicados para jvara.

Entre essas ervas, algumas facilmente encontradas no Brasil são: cominho, cardamomo, coentro, alcaçuz e manjericão-santo (tulsi). Além disso, água quente também tem propriedades dipana pachana e é indicada para febre, como também é indicado o ghee. Nos termos em azul estão algumas referências. 

Uma amostra das muitas outras ervas que não foram citadas pode ser conferida nesse trecho do livro Ashtanga Hrdayam, na leitura dos Samhitas e em outras partes dos livros. Há mais também na comunidade Nilaya, no curso O poder das ervas

  1. Vihara (estilo de vida)

Em relação ao estilo de vida, exercícios e sono diurno podem vir a ser contraindicados de acordo com o paciente, mas o repouso é definitivamente fundamental. O sono fortalece a imunidade, que é nossa arma contra o vírus. Além disso, os clássicos também orientam o consumo de água.

Ponderações finais

Percebe-se que a medicina moderna e a Ayurveda manejam a dengue a partir de seus sinais e sintomas e orientam a hidratação. Contudo, o Ayurveda dá especial atenção à digestão e pode ser adjuvante no tratamento, que varia de acordo com o paciente e com a fase da doença.

Respeitando a complexidade do tema, é oportuno destacar que a dengue, enquanto jvara, está descrita também em outros clássicos do Ayurveda que não foram citados aqui. Para se aprofundar nesse universo de conhecimento milenar, a formação em Ayurveda pode ser uma boa escolha.

Espero que essa leitura tenha contribuído de alguma forma em sua jornada. Se houver dúvida, ou se quiser complementar algo, fique à vontade nos comentários. 🙂

Juliane Palma

Estudante de nutrição

Monitora das disciplinas de Agada Tantra, Sharira Kriya e Rachana II e III e Rasashastra

12 comentários em “O Ayurveda pode auxiliar no manejo da Dengue no Brasil?”

  1. Todo ano temos surto de dengue na minha cidade (Araraquara), então somos cuidadosos na prevenção.
    Porém, há 9 anos atrás eu tive dengue e foi terrível. Mesmo sendo considerada do tipo leve, eu passei semanas indo e voltando do pronto socorro. Fiquei traumatizada.
    Lembrando agora, percebo que não deu atenção nenhuma à minha alimentação. Apenas tomava soro no hospital e remédios para dor e vômito.
    Esse conhecimento poderia ter me ajudado a passar pela dengue com menos sofrimento.
    Muito obrigada pelo artigo, Ju!

    1. Imagino como deve ter sido pesado, Sabrina, sinto muito por essa experiência. Espero que logo logo todos possamos estar livre dessa epidemia! Obrigada pelo comentário.

      Um abração,
      Juliane

  2. Artigo muito esclarecedor e de extrema importância! Tratar do corpo além dos sintomas é um cuidado que precisamos ter diariamente! Parabéns à autora, que se fez entender com clareza mesmo para quem não estuda o Ayurveda!

  3. Suzana Lopes Coelho de Oliveira

    Gostei do artigo, objetivo, de clara compreensão até para os leigos em Ayurveda.
    Uma abordagem o quanto antes para não agravar nenhum dosha é fundamental, logo menos estaremos realizando mais um Ritucharya e o preparo pós dengue com certeza teremos mais atenção!

    1. Suzana Lopes Coelho de Oliveira

      Obrigada pelo retorno, Suzana! Muito bom o ponto que você levantou! Prevenção de doenças no Ayurveda, especialmente as não transmissíveis, passa por práticas de dinacharya, ritucharya, sadvritta e não supressão dos impulsos naturais. No caso das doenças transmissíveis, alguns cuidados adicionais são importantes, como evitar a exposição ao agente e manter nosso terreno imune o mais fortalecido possível. Vamos seguir nos cuidando uns aos outros com carinho e logo essa onda passará!

      Um abração,
      Juliane

  4. Cássia Valadão Valadão

    Li que o coentro pode ser considerado um alimento adstringente e, portanto, segundo o artigo, num primeiro momento, ele seria contraindicado.

    Num segundo momento, entretanto, quando se refere às ervas que podem ajudar no tratamento, o artigo faz menção justamente ao coentro.

    Percebi, então, que estou equivocada com relação à classificação do coentro como adstringente. Poderia exemplificar alguns alimentos adstringentes?

    E, aproveitando a oportunidade, os considerados pesados seriam carnes vermelhas e frituras, por exemplo, ou seja, os alimentos muito gordurosos?

    Super grata pelo artigo e, desde já, pela atenção. Um abraço

    1. Excelentes perguntas, Cássia!

      Quando olhamos para alguma substância (dravya), não olhamos apenas para o sabor (rasa) mas também para 4 outras características: guna (propriedade), virya (potência), vipaka (sabor pós-digestivo) e prabhava (que seria uma ação especial da substância no corpo).

      O coentro, de 6 sabores existentes no ayurveda, possui 4! Você não está equivocada quanto ao sabor, mas além de adstringente ele também é picante (katu), amargo (tikta), e doce (madhura). E as propriedades dele são leve (laghu) e oleoso (snigdha). Então ele é fácil de digerir, mas, ao mesmo tempo, produz oleosidade no corpo. Ele tem uma potência quente, por isso dá suporte à digestão; e tem sabor pós digestivo DOCE, isso significa que ele pode apaziguar vata dosha em seu vipaka. Para aumentar a complexidade, o coentro apresenta uma ação que é tridoshahara, ou seja, apazígua os três doshas do corpo, além de ser dipana e pachana, como citado no texto.

      Por tudo isso que, entre as indicações apresentadas nos clássicos para o coentro, jvara (febre) é uma delas. No Ashtanga Hrdaya Sutrasthana capítulo 15, sloka 16 você encontra a indicação, já que ele faz parte do guduchyadi gana.

      Outra observação importante: ele é um tempero! E como tal, têm suas ações no corpo como resultado principalmente de sua potência, e não de seu sabor. Em geral, alimentos que comemos em muita quantidade, como os alimentos, são rasa pradhana, ou seja, têm seu efeito coordenado principalmente por causa de seu sabor. Por outro lado, temperos/medicamentos que ingerimos em pouca quantidade são virya pradhana, o que quer dizer que têm seu efeito coordenado principalmente por sua potência. Essa informação você encontra no Charaka Samhita, Sutrasthana 2.

      Em relação a exemplo de alguns alimentos adstringentes cotidianos podemos citar o café, alguns chás, chimarrão, kombucha, quiabo, algumas frutas verdes, como banana verde, manga verde e maçã verde, e até mesmo alguns vegetais crucíferos e algumas leguminosas.

      Por fim, quando falamos em alimentos pesados, nos referimos aos alimentos que têm essa propriedade, chamamos em sânscrito de guru guna, entre eles está o leite em geral, alimentos oleosos como você falou, como, inclusive, a linhaça e o gergelim, e também as carnes domesticadas/de criadouros que são comercializadas hoje em dia. Você pode consultar mais no capítulo 6 do Sutrasthana do Ashtanga Hrdayan. Outro ponto importante de observar é o método de preparo do alimento, que pode torná-lo mais leve ou pesado para digestão.

      Cassia, se você ainda não faz parte da nossa formação, se junte a nós, penso que você irá gostar, suas perguntas foram maravilhosas.
      Se alguma dúvida permanece, ou se outra dúvida surgir, fique è vontade para perguntar.

      Um abração,
      Juliane

  5. Incrível como ainda me surpreendo com o quão completa é a medicina Ayurvédica. Eu amo como os diagnósticos são sempre numa abordagem observacional e individual. E como os tratamentos são sempre naturais e, muitas vezes, quase óbvios! Gratidão imensa por todo esse conhecimento que o Vida Veda difunde.

  6. Sensacional este artigo! 🙂 Trouxe tudo muito bem explicado, tanto para leigos quanto para quem quer se aprofundar mais! Completíssimo. Obrigada, Juli.

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