Na nossa sociedade atual, é comum dizermos que a “verdade absoluta” é uma declaração que pode ser atestada com provas e pode passar por falseabilidade ou refutabilidade.
Neste artigo veremos como o mundo atual e a filosofia védica entendem o que é a “Verdade absoluta”.
Por Rodrigo Raposo, monitor de Padārtha Vijñāna e Āyurveda Itihasa.
O conceito acerca da “Verdade absoluta” na atualidade
O conceito de “Verdade absoluta” é um tema complexo e multifacetado, que tem sido explorado e debatido ao longo da história da filosofia, da ciência e até mesmo na vida cotidiana.
Mas a questão é que existem várias definições do que é entendido como “verdade”. A mais comum é a “correspondência”, onde uma declaração é verdadeira se corresponder à realidade ou aos fatos.
Essa definição mais comum incorre em um problema, pois ela é baseada na correspondência daquilo que é realidade dentro de uma limitada perspectiva.
Um bom exemplo que eu posso dar para ilustrar essa realidade limitada é o “paradoxo dos 6 cegos e o elefante”, uma história, originária da Índia, que é frequentemente usada para demonstrar como a experiência subjetiva pode levar a interpretações variadas da mesma realidade.
O paradoxo dos 6 cegos e o elefante
Eu gosto muito de utilizar esse paradoxo para abordar pontos de vistas diferentes. Aqui, seis homens cegos, que não sabem como é a aparência física de um elefante, são convidados a descrever o animal ao tocá-lo. Cada um deles toca uma parte diferente do elefante.
O primeiro cego toca a lateral do elefante e conclui que o elefante é como uma parede felpuda. Para o segundo, a presa do elefante é como uma lança. Já o terceiro cego toca a tromba e acha que o elefante é como uma cobra enorme. O quarto cego sente a perna do elefante e afirma que ele é como o tronco de uma árvore, enquanto que o quinto afirma que a orelha do elefante é como um leque. Por fim, o sexto segura a cauda do elefante e acredita que ele é como uma corda.
A moral da história é que nenhum dos cegos está tecnicamente errado, percebe? Cada um descreve corretamente a parte do elefante que ele tocou. No entanto, nenhuma dessas descrições captura a totalidade do elefante, mas sim uma parte dela.
O paradoxo do 6 e 9
Outro exemplo que eu poderia usar para ilustrar a limitação acerca da realidade é escrever no chão o número 6 e colocar duas pessoas em cada lado do número.
Para a pessoa que está abaixo do número 6, a realidade dela é que esse número é o 6. Mas para a pessoa que está acima do número, a verdade (dentro da perspectiva dela) é que esse número é o 9. E ambas estão certas, até certo ponto.
Outras noções sobre o que é a “verdade” incluem a “coesão”, onde a verdade é vista como aquilo que é logicamente consistente dentro de um determinado sistema, e a “pragmática”, onde a verdade é aquilo que é útil ou funcional.
A “verdade” na filosofia ocidental
Na filosofia ocidental, o estudo da “verdade” é chamado de “teoria da verdade”. Grandes filósofos como Platão, Aristóteles, Kant e Nietzsche abordaram o tema de diferentes maneiras.
Alguns filósofos argumentam que a verdade é absoluta e universal, enquanto outros acreditam que ela é relativa ao contexto ou à percepção individual, como vimos acima, no paradoxo dos 6 cegos e o elefante e no número 6 (que pode ser 9).
Friedrich Nietzsche, um dos filósofos mais influentes do século 19, teve uma perspectiva única e muitas vezes provocativa sobre a “verdade”. Seus pontos de vista sobre esse tema podem ser resumidos em alguns conceitos-chave:
Verdade como Ilusão
Nietzsche frequentemente descrevia a verdade como uma “ilusão” ou uma “mentira necessária”.
Nos livros “Além do Bem e do Mal” e “A Gaia Ciência”, ele sugere que o que consideramos “verdade” é muitas vezes uma construção humana, moldada por nossas necessidades, desejos e instintos.
Ele argumenta que não existe uma verdade “objetiva” ou “absoluta”.
Verdade e Perspectivismo
Nietzsche introduziu a ideia do perspectivismo, que sugere que todas as percepções, incluindo nossas crenças e conhecimentos, são condicionadas por perspectivas individuais.
Ele argumenta que não há um ponto de vista único de onde possamos acessar a verdade absoluta. Em vez disso, a verdade é sempre parcial e limitada pela perspectiva de quem a observa, novamente como vimos mais acima.
A “Verdade” na Ciência
Na ciência, a verdade é frequentemente associada à precisão e à verificabilidade. Uma teoria ou hipótese científica é considerada verdadeira se as evidências experimentais e observacionais a apoiam.
No entanto, as “verdades” científicas são muitas vezes provisórias, sujeitas a revisão à medida que novas informações são descobertas.
Um exemplo que eu posso trazer é a Medicina Baseada em Evidências, que utiliza resultados de pesquisas científicas, especialmente estudos randomizados controlados e meta análises, para informar as práticas médicas. Essas evidências são consideradas mais confiáveis do que a opinião de especialistas ou a prática clínica tradicional, pois são baseadas em métodos rigorosos e análise objetiva.
Mas ainda assim não expressa o que é a “verdade absoluta”.
A “Verdade” e a sociedade
Em um contexto social, a verdade pode ser influenciada por fatores culturais, políticos e sociais.
A mídia, a educação e as instituições sociais desempenham um papel significativo na formação do que é considerado verdadeiro ou falso em uma sociedade.
A “Verdade” e a ética
A verdade também tem um aspecto ético importante. Eu ser honesto, falar a verdade e buscar a verdade são geralmente considerados valores morais importantes.
Por outro lado, a desinformação e a mentira são vistos como prejudiciais e antiéticos. No mundo contemporâneo, a questão da verdade tornou-se ainda mais complexa com a proliferação de informações (e desinformações) na internet.
Discernir a verdade em meio a uma vasta quantidade de dados, notícias e opiniões é um desafio significativo para indivíduos e sociedades.
Mas a questão é que nada disso expressa o que é a “Verdade absoluta”.
A “Verdade absoluta” no ponto de vista védico
A filosofia vedanta acredita que a Verdade está associada com aquilo que é real, aquilo que existe sempre, assim como a mentira está associada com aquilo que não é real, aquilo que não existe. Até aqui tá fácil, certo?
Existem 3 palavras em sânscrito que irei usar aqui para esclarecer melhor sobre esse assunto:
Tattva ou Sat – é tudo aquilo que é real, existente;
Asat – é aquilo que é falso, não-existente;
Mithyā – representa tudo aquilo que é aparente.
Sat (real) é aquilo que existe sempre e jamais poderá ser negado. Ela não tem início nem fim. Ela é eterna. Se a existência dela fosse temporária e não eterna, isso significaria que antes dela, ela não existia, portanto não seria real, pois aquilo que não existe não pode ser real, certo?
Asat (falso) é tudo aquilo que não existe. Essa é fácil. Pensa em chifre de coelho, filho biológico de uma mulher estéril, ratos falantes etc. Nada disso existe, sendo, portanto, asat (falso). Mithyā (aparente) é tudo aquilo que parece ser sat (real), mas não é, mas que também não é asat (falso). Vamos ver sobre isso agora, usando o exemplo de uma caneca.
A verdade aparente de uma caneca de barro
Imagine uma caneca de barro. Ela não é sat (real), porque para ela ser real, ela precisa ser ilimitada no tempo, espaço e forma.
Limitação no tempo
A caneca é limitada tanto no tempo, como no espaço e na forma. Ela é limitada no tempo porque ela não existe desde sempre. Em algum momento alguém criou a caneca. Assim como ela não irá durar para sempre. Um dia ela irá quebrar, sendo, portanto, temporária.
Também podemos dizer que ela é temporária no sentido de função. Por um tempo ela poderá ser usada para beber chá, café, mas depois ela pode se tornar um porta-canetas. Com isso ela deixa de ser um objeto para beber algo.
Limitação no espaço
Ela é limitada no espaço, pois ela não é onipresente, afinal, não está em todos os lugares e também possui um limite de tamanho, não ocupando assim, todo o espaço existente.
Limitação na forma
Por fim, ela é limitada na forma, pois sua massa é finita. Não posso transformar a caneca em uma rodovia, que também possui finitude, pois uma hora ela acaba. Logo, a caneca de barro não é sat, mas ao mesmo tempo não é asat , pois não tem como negar que ela existe.
Mas se ela não é sat nem asat, o que seria a caneca?
Neste caso, a caneca de barro é mithyā (aparente). Ou seja, ela possui uma existência, mas é temporária, não-absoluta. Ela possui uma existência relativa, pois ela depende de outra coisa para existir. Ela só irá se tornar uma caneca se você a usá-la para beber algo. Mas se você colocar uma caneta dentro, ela deixará de ser caneca e se torna um porta-canetas.
No entanto, essa caneca sendo de barro, passamos a ter dois elementos: o barro é sat (real), mas a caneca é mithyā (aparente)…. Pausa dramática!
A caneca de barro, quando cair no chão e quebrar, um elemento irá se separar do outro. A caneca vai deixar de existir, mas o barro não, pois você pode pegar o barro e criar outro objeto com ele, até mesmo outra caneca.
Tattvabhodaḥ – A indagação acerca da Verdade
Considerado um livro importante para o entendimento do Vedanta, o Tattvabhodaḥ, uma obra de Sri Sankaracarya, traduzida e comentada por Gloria Arieira, publicada pelo Vidya Mandir, mostra-se essencial para o desenvolvimento do Ser e a busca pela Verdade.
Trata-se de um tratado introdutório que explica os conceitos básicos do Vedanta, uma das seis escolas ortodoxas da filosofia hindu. Aqui estão os pontos principais:
Ātmā como a Verdade Absoluta
O Tattvabhodaḥ ensina que Ātmā, seu verdadeiro Eu, a realidade última e infinita, é a Verdade absoluta. Ela é geralmente associada no ocidente como “alma”.
A Verdade (tattva) é que existe um real (satyam) e tudo o mais é aparente (mithyā). Ātmā é satyam, que é sempre real e existente. Ele jamais poderá ser negado nem no passado, no presente e futuro. Não existem nenhum momento onde Ātmā não existe. Todo o resto é mithyā (aparente, temporário).
Portanto, mithyā é aquilo que não pode ser definido, ou seja, quando analisamos algo, chegamos sempre a outra coisa, como a caneca de barro, onde a caneca é mithyā e o barro é satyam).
Identidade de Ātmā e Brahman
O Vedanta sustenta que a verdadeira natureza do ser humano, o Ātmā, é idêntica a Brahman. Esta visão é frequentemente ilustrada com a analogia da gota de água e o oceano: assim como uma gota de água que salta da superfície do mar não é fundamentalmente diferente do oceano, a alma individual não é diferente da realidade última.
Essa perspectiva enfatiza a unidade de toda a existência e a não-dualidade entre o ser individual e o Cosmos.
Isto quer dizer que as diferenças percebidas entre o indivíduo e o universo são ilusórias e a realização espiritual ocorre quando essa ilusão é transcendida, reconhecendo-se a unidade de todos os seres com a realidade última.
A minha ignorância (Avidya) é o que me impede de perceber essa verdade.
Em resumo, a conclusão do “Tattvabodha” sobre a Verdade é que as identidades de Ātmā (quem você é de verdade) e Brahman (a Realidade Suprema, Deus) são unas, e que a ilusão de separação e a dualidade do mundo material são superadas pelo conhecimento espiritual, levando à realização da unidade essencial de todo o ser com o absoluto.
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Um forte abraço!
Rone filósofo artur